Mais um dia cinza, desses de céu cor-de-chumbo que quer desabar todo sobre a minha cabeça. Reina a melancolia. Deitada na minha cama posso ver da janela um pedacinho do céu que ameaça em surdina. Mas ele é pequeno e débil visto daqui, como um quadro na moldura da janela. Um céu bebê de chumbo, controlado e contido, adormecido num leito de esquadrias de alumínio, nana-nenê. Me deito na cama porque nela mandei instalar um dossel, que era algo que eu sempre quis ter numa cama: um dossel. Assim refugiada numa espécie de tenda que remete às lendas das mil e uma noites e às princesas encantadas dos contos da minha infância, um enorme conforto me transporta pra dentro do sonho sem estar propriamente adormecida. Minha cama é como um sólido recorte no mundo real, repleto de espaço etéreo preenchido apenas pela fantasia. Um lugar onírico onde reina o meu desejo, esse desejo louco e latente e embriagado e imensurável, esse desejo ao mesmo tempo de vida, de sonhos, de delírio, de loucura. Esse desejo que pulsa e grita e que frequentemente transborda e se espalha em todas as direções numa explosão impossível de ser controlada.
Ao mesmo tempo o dossel, que contêm este espaço, o delimita geograficamente, e dentro dele me sinto segura como em nenhum outro espaço físico do planeta. Ali dentro meu desejo pode explodir como bomba H, como tsunami, ou como colisão de gigantescos conglomerados de estrelas, sem varrer do mapa japões, indonésias ou galáxias inteiras. Sem causar maiores transtornos ao resto da humanidade, que afinal de contas ninguém tem culpa do fato de eu sentir demais. Nem eu mesma, aliás. Nem a culpa, aliás. (Nem mesmo a própria culpa, esta pobre serviçal da moral dos tempos, tem absolutamente nada a ver com o fato de fazer-se sentir em momentos completamente inadequados... é a consciência sempre vigilante que a intima a comparecer como o algoz dos sentimentos mais profundamente enterrados nos recônditos da alma humana).
Aqui me refugio e no refúgio meu desejo se espalha, e o dia cinzento e o medonho céu de chumbo são vagas lembranças do mundo distante. Meu quarto e meu corpo são feitos da mesma matéria, e ela pulsa. Eu fujo pro sonho porque é nele que sempre me busco, e quando quase me encontro mais fundo me escondo, porque esse sempre foi meu passatempo favorito, e parar de me esconder seria me entregar definitivamente ao caminho sem volta que nos leva à vida totalmente adulta. E eu definitivamente não quero abandonar a criança que foge pra debaixo da cama de dossel, pois sinto que ela precisa de mim tanto quanto eu preciso dela, não há possibilidade de uma sem a outra. Mesmo que todos discordem e o mundo me diga o tempo todo “cresça!”, eu sigo sendo a menina de tranças, a menina de rosa, a menina de bandeide no joelho que ama uma boneca chamada... droga, não me lembro mais o nome dela..
Essa menina já tem em si todo o desejo do mundo, e apesar disso não tem o medo de deixá-lo transbordar. Essa menina não precisa do dossel na cama a não ser nas fantasias de princesa adormecida. Ela não precisa criar um espaço para a fantasia, porque vive inteira dentro de seu território. E o desejo da menina não vira tsunami ou bomba H, muito menos explosão de supernova, porque a menina o tem transbordando num fluxo contínuo por cada poro a todo o momento.
A menina sou eu e eu sou a menina. Tento apenas equilibrar o jogo, porque às vezes, muitas vezes, bem mais do que eu gostaria, eu preciso sair debaixo do dossel da cama pra encarar um céu cinzento disfarçando o medo que eu sinto, que não é bem-visto pelos olhos do mundo. E todo esse desejo que tenho, impertinente, que não cabe num templo ou numa caixa de sapatos, esse desejo que explode no universo infinito de uma cama de dossel, tenho que guardá-lo nos limites do palpável, que assim fica mais fácil de mantê-lo adormecido.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
sábado, 1 de agosto de 2009
Retorno
Você parado ali na porta da frente, olhando pra mim com olhos inchados – de raiva, bebedeira ou sono atrasado?...
Despertei subitamente do estado de vigília que sempre me assolava quando me punha a esperar – uma espécie de transe, de quase sono sem sonhos; seus olhos tontos, olhos perdidos...
Me aproximei de você pronta a te dar um abraço, te levar pra cama, te cobrir carinhosamente, como só uma mãe o faria, talvez até cantarolar uma velha canção de ninar - como nos bons tempos, lembra-se? Eu mesma não consigo mais lembrar...
Você parece tão perdido em devaneios, o olhar tão insano, olhando através do meu corpo, através das paredes, dos velhos quadros empoeirados, vislumbrando antigos mundos detruídos, civilizações ancestrais dizimadas pelas chamas ou pela fúria de mares revoltos, impérios destroçados pela fome, pela peste ou pela guerra... Tudo isso eu via refletido nos seus olhos, e a ansiedade de te amparar, de te embalar, de te confortar e espantar seus pesadelos crescia dentro de mim na tentativa de vencer a letargia que dominava meu corpo e meu espírito.
Eu estava hipnotizada. Hipnotizada por aquele seu olhar, lunático e inflamado, vagando junto com ele por tantos mundos perdidos, enxergando através dos seus olhos todas as atrocidades cometidas ao longo de todas as eras – os mais requintados métodos de tortura, os mais diversos tipos de execuções sumárias, centenas de cadáveres empilhados sobre ruínas de destroços mal-cheirosos, batalhões de crianças famélicas com cabeças desprovidas de rostos - tudo passava diante de mim através dos seus olhos, fazendo-me sentir o que você sentia, todo o seu desespero, todo o seu desprezo pela humanidade, seu flerte constante e apaixonado com a Morte. Por um instante pude compartilhar com você, e por fim compreender, a misteriosa atração que a velha senhora exercia, o desejo quase incontrolável de atirar-me para ela e ser envolta em seus braços frios, deixando-me embalar por sua canção derradeira.
Mas alguma coisa estranhamente distante dentro de mim apagou tais devaneios, talvez fossse a própria essência da vida lembrando-me que era apenas você, o ser que eu amava, e não aquele anjo do apocalipse de olhar inflamado, a expressão refletindo a da própria Morte. Vencendo num mesmo impulso o torpor da hipnose e o terror das visões compartilhadas, consegui finalmente mover-me em sua direção, e embora você estivesse a talvez uns dois metros de distância de mim, meus pés descalços percorreram longos vales e atravessaram montanhas, sentindo as pedras arranhando-lhes as solas, a grama molhando-os, a terra entrando-lhes por entre os dedos. Nunca aquele vestíbulo havia se estendido por tão longas distâncias à minha frente.
Finalmente te alcancei – músculos exauridos, pernas trêmulas - ; por quanto tempo teria estado te esperando? Horas, dias, semanas, ... simplesmente não conseguia me lembrar, porque não tinha mais importância, você estava ali, o terror incondicional do seu olhar cessara, e você agora me olhava nos olhos e seus olhos pareceram enxergar minha alma, pareceram ver a ansiedade que a dominava.
Sem mais poder me conter, estendi os braços para você, e você se aproximou, mais devagar do que de costume, e de repente uma centelha de dúvida acendeu-se em algum lugar de meu espírito. Ainda havia algo de insano e inescrutável no seu olhar –“algo de podre no reino da Dinamarca”, murmurou um Hamlet decadente das profundezas do meu inconsciente; mas tudo não durou mais que uma fração de segundo... estávamos abraçados, e a dúvida em minh’alma dissipou-se no calor daquele abraço, e todo o meu corpo regozijou-se daquele contato, e o meu prazer foi tão intenso que quase não pude sentir o toque frio e cortante da lâmina que deslizava em meu pescoço, cortando-me a garganta, fazendo saltar da minha jugular um jorro quente e úmido que inundou nosso abraço em uma torrente vermelha e pulsante. Só pude sentir a frieza da lâmina quando já era tarde demais, e aceitei o destino que você me impingiu com estranha subserviência, deixando o peso do meu corpo desabar sobre você, satisfeita por morrer em seus braços, a vida saindo toda de dentro de mim através do corte em minha garganta, esvaindo-se naquele jato morno, rubro e pegajoso. Nunca, até aquele instante, poderia ter imaginado que a vida, ao abandonar o meu corpo, teria um aspecto tão orgânico, tão imanente. O momento da morte nada tinha de metafísico: era apenas sangue jorrando por uma veia cortada.
Mesmo quando a visão sucumbiu, e os outros sentidos aos poucos também, esta foi a impressão que ficou. Não havia mais nada. Você me matou.
Despertei subitamente do estado de vigília que sempre me assolava quando me punha a esperar – uma espécie de transe, de quase sono sem sonhos; seus olhos tontos, olhos perdidos...
Me aproximei de você pronta a te dar um abraço, te levar pra cama, te cobrir carinhosamente, como só uma mãe o faria, talvez até cantarolar uma velha canção de ninar - como nos bons tempos, lembra-se? Eu mesma não consigo mais lembrar...
Você parece tão perdido em devaneios, o olhar tão insano, olhando através do meu corpo, através das paredes, dos velhos quadros empoeirados, vislumbrando antigos mundos detruídos, civilizações ancestrais dizimadas pelas chamas ou pela fúria de mares revoltos, impérios destroçados pela fome, pela peste ou pela guerra... Tudo isso eu via refletido nos seus olhos, e a ansiedade de te amparar, de te embalar, de te confortar e espantar seus pesadelos crescia dentro de mim na tentativa de vencer a letargia que dominava meu corpo e meu espírito.
Eu estava hipnotizada. Hipnotizada por aquele seu olhar, lunático e inflamado, vagando junto com ele por tantos mundos perdidos, enxergando através dos seus olhos todas as atrocidades cometidas ao longo de todas as eras – os mais requintados métodos de tortura, os mais diversos tipos de execuções sumárias, centenas de cadáveres empilhados sobre ruínas de destroços mal-cheirosos, batalhões de crianças famélicas com cabeças desprovidas de rostos - tudo passava diante de mim através dos seus olhos, fazendo-me sentir o que você sentia, todo o seu desespero, todo o seu desprezo pela humanidade, seu flerte constante e apaixonado com a Morte. Por um instante pude compartilhar com você, e por fim compreender, a misteriosa atração que a velha senhora exercia, o desejo quase incontrolável de atirar-me para ela e ser envolta em seus braços frios, deixando-me embalar por sua canção derradeira.
Mas alguma coisa estranhamente distante dentro de mim apagou tais devaneios, talvez fossse a própria essência da vida lembrando-me que era apenas você, o ser que eu amava, e não aquele anjo do apocalipse de olhar inflamado, a expressão refletindo a da própria Morte. Vencendo num mesmo impulso o torpor da hipnose e o terror das visões compartilhadas, consegui finalmente mover-me em sua direção, e embora você estivesse a talvez uns dois metros de distância de mim, meus pés descalços percorreram longos vales e atravessaram montanhas, sentindo as pedras arranhando-lhes as solas, a grama molhando-os, a terra entrando-lhes por entre os dedos. Nunca aquele vestíbulo havia se estendido por tão longas distâncias à minha frente.
Finalmente te alcancei – músculos exauridos, pernas trêmulas - ; por quanto tempo teria estado te esperando? Horas, dias, semanas, ... simplesmente não conseguia me lembrar, porque não tinha mais importância, você estava ali, o terror incondicional do seu olhar cessara, e você agora me olhava nos olhos e seus olhos pareceram enxergar minha alma, pareceram ver a ansiedade que a dominava.
Sem mais poder me conter, estendi os braços para você, e você se aproximou, mais devagar do que de costume, e de repente uma centelha de dúvida acendeu-se em algum lugar de meu espírito. Ainda havia algo de insano e inescrutável no seu olhar –“algo de podre no reino da Dinamarca”, murmurou um Hamlet decadente das profundezas do meu inconsciente; mas tudo não durou mais que uma fração de segundo... estávamos abraçados, e a dúvida em minh’alma dissipou-se no calor daquele abraço, e todo o meu corpo regozijou-se daquele contato, e o meu prazer foi tão intenso que quase não pude sentir o toque frio e cortante da lâmina que deslizava em meu pescoço, cortando-me a garganta, fazendo saltar da minha jugular um jorro quente e úmido que inundou nosso abraço em uma torrente vermelha e pulsante. Só pude sentir a frieza da lâmina quando já era tarde demais, e aceitei o destino que você me impingiu com estranha subserviência, deixando o peso do meu corpo desabar sobre você, satisfeita por morrer em seus braços, a vida saindo toda de dentro de mim através do corte em minha garganta, esvaindo-se naquele jato morno, rubro e pegajoso. Nunca, até aquele instante, poderia ter imaginado que a vida, ao abandonar o meu corpo, teria um aspecto tão orgânico, tão imanente. O momento da morte nada tinha de metafísico: era apenas sangue jorrando por uma veia cortada.
Mesmo quando a visão sucumbiu, e os outros sentidos aos poucos também, esta foi a impressão que ficou. Não havia mais nada. Você me matou.
sábado, 13 de junho de 2009
Para Ian, em algum lugar do tempo
Ao observar-te assim, adormecido, uma imensa ternura toma-me de assalto, uma ternura tão grande que é capaz de inebriar, de transbordar, de fazer sentir o peito apertar-se de súbito, e fazer emergir ao leito dos olhos furtivas lágrimas incontíveis. Incontidas, elas rolam, tornando turva a imagem do teu pequeno corpinho a ronronar, deitado de bruços, o lento movimento das costas acompahando o ritmo da tua respiração. Teus olhinhos, mesmo fechados, selados por fileiras de lânguidas, longilíneas pestanas, movem-se na velocidade de cada fragmento de sonhos, os quais vives intensamente enquanto tua mãe ternamente te observa.
Quase posso sentir tempo e espaço cristalizando-se pouco a pouco, em conivente esforço de eternizar a existência deste instante. Queria viver para sempre o instante de olhar-te adormecido.
Este sentimento – que me custa até mesmo chamar de amor, mas que de amor, por ora, chamarei, é algo que só as mães entendem. Só as mães conhecem este amor que pode ser ao mesmo tempo altruísta e egoísta, pois são capazes de sacrificar a vida pela integridade do filho, enquanto consideram-no, para sempre, um pedaço indissociável de sua própria alma.
Teu sono é velado por tua mãe, e também por toda a magia do universo.
Quase posso sentir tempo e espaço cristalizando-se pouco a pouco, em conivente esforço de eternizar a existência deste instante. Queria viver para sempre o instante de olhar-te adormecido.
Este sentimento – que me custa até mesmo chamar de amor, mas que de amor, por ora, chamarei, é algo que só as mães entendem. Só as mães conhecem este amor que pode ser ao mesmo tempo altruísta e egoísta, pois são capazes de sacrificar a vida pela integridade do filho, enquanto consideram-no, para sempre, um pedaço indissociável de sua própria alma.
Teu sono é velado por tua mãe, e também por toda a magia do universo.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Sonhos
(I)
Nossa casa/abrigo fica à beira-mar. Não de frente para a praia, mas sobre um deque que avança mar adentro. Não é uma praia deserta, é uma praia urbana, como uma Ipanema em um lugar fora do mundo.
Somos três vivendo ali. Passando uma temporada talvez, há um clima no ar de "isto é especial e não vai durar pra sempre". Mas ao cair da tarde saímos apenas eu e ele para ver de dentro do mar o espetáculo dos fogos de artifício. Os fogos estouram bem longe, no horizonte, olhamos e o sentimento mútuo é de maravilha, de estar compartilhando algo realmente incrível. Saímos da água, pessoas caminham no calçadão sob a luz dos postes que acendem todos ao mesmo tempo, nós bebemos e rimos e celebramos o encanto daqueles momentos. Passamos a noite assim, na praia bebendo e rindo e trocando olhares que dizem muito. Há uma forte tensão sexual no ar, mas não nos beijamos. Parece que não é preciso.
Dia seguinte. Acordo cedo e me deparo com os dois, ele e ela, tomando café-da-manhã na cozinha. Estou feliz, tudo é muito luminoso. Olho meu rosto no espelho do banheiro e ele me parece estranho. A pele está descascando por causa do excesso de sol, e há manchas meio escuras como das pessoas que têm vitiligo. No entanto me acho especialmente bonita naquele momento, com meu cabelo preso num rabo de cavalo com cachos que chegam à altura dos ombros. Ponho uns óculos escuros de armação branca e contemplo a imagem no espelho.
Volto à cozinha onde os dois estão rindo. Ele então comenta: "Eu e XXXX (o nome é pronunciado de forma ininteligível) podíamos ter ficado ontem... acho que ficamos"... eu respondo com um sorriso e passo por trás dele dando a volta pra chegar à geladeira. Percebo então sobre a mesa papéis de polenguinho amassados, e me lembro imediatamente dos três que escondi ontem na geladeira, atrás de um pote de mostarda de dijon, embaixo de um pacote de queijo ralado, em meio às abobrinhas na gaveta de legumes. Sinto um misto de raiva e desespero me subindo à cabeça (parece que polenguinhos são mesmo um tesouro por aqui), mas uma segunda olhada em direção à mesa me revela que não são polenguinhos mesmo, mas algo parecido, como polenguinhos de marca genérica (o nome da marca era Regina...?). Respiro aliviada.
***
(II)
O narrador, de personagem, passa a observador. Mas pode, às vezes, ver através dos olhos do protaganista, e sente o que ele sente o tempo todo, como um deus onisciente. O protagonista, por sua vez, é um rapaz que deve ter uns vinte anos e é muito bonito. Tem cabelos louros que à primeira vista parecem curtos, mas logo percebe-se que ele mantem um estranho rabo de cavalo que quase sempre repousa sobre o ombro esquerdo. Ele está num navio rumo a Cingapura. O objetivo de sua viagem é reencontar a moça que é seu grande amor (é uma aventura romântica). Mas o navio em que ele viaja é uma espécie de embarcação que carrega ilegalmente através dos mares gente que não tem condições de arcar com as despesas de uma viagem dessas. Ele observa o convés do navio e a cena que vê é bastante grotesca. Todas as centenas de pessoas ali presentes são incrivelmente desformes, e no entanto cantam e dançam, e a cena se parece com um festim medieval povoado de demônios, como um quadro de Bosch. Há inúmeras psicinas de diversos tamanhos espalhadas por ali, e muitas daquelas pessoas sentam-se ao redor com as canelas na água. Ele observa uma dessas piscinas, onde um homem amarra o último dente que tem na boca ao corpo de uma enorme carpa, e quando esta salta na água leva consigo o dente amarrado ao cordão, para gozo e delírio do pequeno grupo que observa a cena. Nada daquilo parece real. Ele se aproxima da beira de uma piscina grande e olha para a água. Um tubarão de tamanho descomunal pula de repente para fora, num susto, e cai no chão se debatendo, enquanto algumas pessoas correm assustadas. Ele não corre mas mantêm-se inerte, paralisado pelo estranho fascínio que a visão do tubarão lhe proporciona. Quando dá por si percebe, cada vez mais perturbado, que o enorme animal é feito de espuma, como um fantoche gigante, e de dentro dele sai um rapaz, que vem caminhamdo em sua direção. O rapaz é simplesmente a coisa mais bonita que ele já viu em toda a vida, e o momento é impregnado de uma tensão que é quase palpável. A beleza do garoto saído da boca do tubarão é diferente de tudo que ele já vira, diferente inclusive da sua própria beleza, que é mais dentro do padrão, mais lugar-comum. O garoto-tubarão é bem magro, seus cabelos são pretos, seu andar é felino, seu olhar é carregado de uma energia feminina destruidora, e quando os dois estão frente-a-frente eles se encaram, o garoto-tubarão passa as costas da mão pelo rosto do protagonista, ele percebe-se neste momento completamente arrebatado, louco de paixão, e nada mais importa. (imagem: THE HARROWING OF HELL -HIERONYMUS BOSCH)
Nossa casa/abrigo fica à beira-mar. Não de frente para a praia, mas sobre um deque que avança mar adentro. Não é uma praia deserta, é uma praia urbana, como uma Ipanema em um lugar fora do mundo.
Somos três vivendo ali. Passando uma temporada talvez, há um clima no ar de "isto é especial e não vai durar pra sempre". Mas ao cair da tarde saímos apenas eu e ele para ver de dentro do mar o espetáculo dos fogos de artifício. Os fogos estouram bem longe, no horizonte, olhamos e o sentimento mútuo é de maravilha, de estar compartilhando algo realmente incrível. Saímos da água, pessoas caminham no calçadão sob a luz dos postes que acendem todos ao mesmo tempo, nós bebemos e rimos e celebramos o encanto daqueles momentos. Passamos a noite assim, na praia bebendo e rindo e trocando olhares que dizem muito. Há uma forte tensão sexual no ar, mas não nos beijamos. Parece que não é preciso.
Dia seguinte. Acordo cedo e me deparo com os dois, ele e ela, tomando café-da-manhã na cozinha. Estou feliz, tudo é muito luminoso. Olho meu rosto no espelho do banheiro e ele me parece estranho. A pele está descascando por causa do excesso de sol, e há manchas meio escuras como das pessoas que têm vitiligo. No entanto me acho especialmente bonita naquele momento, com meu cabelo preso num rabo de cavalo com cachos que chegam à altura dos ombros. Ponho uns óculos escuros de armação branca e contemplo a imagem no espelho.
Volto à cozinha onde os dois estão rindo. Ele então comenta: "Eu e XXXX (o nome é pronunciado de forma ininteligível) podíamos ter ficado ontem... acho que ficamos"... eu respondo com um sorriso e passo por trás dele dando a volta pra chegar à geladeira. Percebo então sobre a mesa papéis de polenguinho amassados, e me lembro imediatamente dos três que escondi ontem na geladeira, atrás de um pote de mostarda de dijon, embaixo de um pacote de queijo ralado, em meio às abobrinhas na gaveta de legumes. Sinto um misto de raiva e desespero me subindo à cabeça (parece que polenguinhos são mesmo um tesouro por aqui), mas uma segunda olhada em direção à mesa me revela que não são polenguinhos mesmo, mas algo parecido, como polenguinhos de marca genérica (o nome da marca era Regina...?). Respiro aliviada.
***
(II)
O narrador, de personagem, passa a observador. Mas pode, às vezes, ver através dos olhos do protaganista, e sente o que ele sente o tempo todo, como um deus onisciente. O protagonista, por sua vez, é um rapaz que deve ter uns vinte anos e é muito bonito. Tem cabelos louros que à primeira vista parecem curtos, mas logo percebe-se que ele mantem um estranho rabo de cavalo que quase sempre repousa sobre o ombro esquerdo. Ele está num navio rumo a Cingapura. O objetivo de sua viagem é reencontar a moça que é seu grande amor (é uma aventura romântica). Mas o navio em que ele viaja é uma espécie de embarcação que carrega ilegalmente através dos mares gente que não tem condições de arcar com as despesas de uma viagem dessas. Ele observa o convés do navio e a cena que vê é bastante grotesca. Todas as centenas de pessoas ali presentes são incrivelmente desformes, e no entanto cantam e dançam, e a cena se parece com um festim medieval povoado de demônios, como um quadro de Bosch. Há inúmeras psicinas de diversos tamanhos espalhadas por ali, e muitas daquelas pessoas sentam-se ao redor com as canelas na água. Ele observa uma dessas piscinas, onde um homem amarra o último dente que tem na boca ao corpo de uma enorme carpa, e quando esta salta na água leva consigo o dente amarrado ao cordão, para gozo e delírio do pequeno grupo que observa a cena. Nada daquilo parece real. Ele se aproxima da beira de uma piscina grande e olha para a água. Um tubarão de tamanho descomunal pula de repente para fora, num susto, e cai no chão se debatendo, enquanto algumas pessoas correm assustadas. Ele não corre mas mantêm-se inerte, paralisado pelo estranho fascínio que a visão do tubarão lhe proporciona. Quando dá por si percebe, cada vez mais perturbado, que o enorme animal é feito de espuma, como um fantoche gigante, e de dentro dele sai um rapaz, que vem caminhamdo em sua direção. O rapaz é simplesmente a coisa mais bonita que ele já viu em toda a vida, e o momento é impregnado de uma tensão que é quase palpável. A beleza do garoto saído da boca do tubarão é diferente de tudo que ele já vira, diferente inclusive da sua própria beleza, que é mais dentro do padrão, mais lugar-comum. O garoto-tubarão é bem magro, seus cabelos são pretos, seu andar é felino, seu olhar é carregado de uma energia feminina destruidora, e quando os dois estão frente-a-frente eles se encaram, o garoto-tubarão passa as costas da mão pelo rosto do protagonista, ele percebe-se neste momento completamente arrebatado, louco de paixão, e nada mais importa. (imagem: THE HARROWING OF HELL -HIERONYMUS BOSCH)
terça-feira, 14 de abril de 2009
máscara
Ostento um sorriso meticulosamente esculpido
Na máscara etérea que escolho para o dia.
Por este motivo não percebem que eu sofro
Aqueles que me olham na rua de relance
e os que me dirigem cordiais saudações
todas as manhãs a caminho do trabalho.
Apenas um olhar atento – mais que atento, comprometido,
notaria talvez, quem sabe,
por sob o manto volátil que encobre o meu rosto,
uma gota equilibrando-se no canto do olho esquerdo,
como que a desafiar a lei da gravidade,
recusando-se a rolar maçã do rosto abaixo
até escorrer pelo meu queixo afora,
cumprindo assim seu inexorável destino de lágrima.
E ainda um leve, quase imperceptível pulsar
no canto direito do meu lábio superior,
sintoma de um desejo inconsciente de pranto
que acaba por nunca se materializar.
Porque este olhar, ah, este olhar...
Este olhar, meus senhores, simplesmente não existe.
Porque o comprometimento do olhar com o objeto olhado,
a verdadeira cumplicidade da córnea humana
com cada partícula luminosa responsável
pela formação da imagem enxergada,
esgotou-se no cansaço da oferta em demasia.
Hoje apenas derramamos olhares descompromissados,
pois há tanto pra ver e tão pouco tempo,
e tanta fadiga em nossas retinas exauridas...
Sigo, portanto, carregando sobre a face
a minha reluzente máscara kabuki,
e todo o mundo há de crer ser esta expressão vazia,
estanque, torpe, imutável, sorridente,
legítima representante do que carrego em minha alma.
E sua verdadeira expressão? – perguntariam, então, os senhores...
Esta permanecerá eternamente escondida, sepultada,
ao longo de toda a minha existência,
condenada à constante iminência
do pranto impossível de ser consumado...
Na máscara etérea que escolho para o dia.
Por este motivo não percebem que eu sofro
Aqueles que me olham na rua de relance
e os que me dirigem cordiais saudações
todas as manhãs a caminho do trabalho.
Apenas um olhar atento – mais que atento, comprometido,
notaria talvez, quem sabe,
por sob o manto volátil que encobre o meu rosto,
uma gota equilibrando-se no canto do olho esquerdo,
como que a desafiar a lei da gravidade,
recusando-se a rolar maçã do rosto abaixo
até escorrer pelo meu queixo afora,
cumprindo assim seu inexorável destino de lágrima.
E ainda um leve, quase imperceptível pulsar
no canto direito do meu lábio superior,
sintoma de um desejo inconsciente de pranto
que acaba por nunca se materializar.
Porque este olhar, ah, este olhar...
Este olhar, meus senhores, simplesmente não existe.
Porque o comprometimento do olhar com o objeto olhado,
a verdadeira cumplicidade da córnea humana
com cada partícula luminosa responsável
pela formação da imagem enxergada,
esgotou-se no cansaço da oferta em demasia.
Hoje apenas derramamos olhares descompromissados,
pois há tanto pra ver e tão pouco tempo,
e tanta fadiga em nossas retinas exauridas...
Sigo, portanto, carregando sobre a face
a minha reluzente máscara kabuki,
e todo o mundo há de crer ser esta expressão vazia,
estanque, torpe, imutável, sorridente,
legítima representante do que carrego em minha alma.
E sua verdadeira expressão? – perguntariam, então, os senhores...
Esta permanecerá eternamente escondida, sepultada,
ao longo de toda a minha existência,
condenada à constante iminência
do pranto impossível de ser consumado...
sexta-feira, 13 de março de 2009
Junkielove morning
Amanhecemos num pé-sujo da Lapa,
as putas e os travestis já se foram.
Mais um copo, mais um beijo,
sabor de cevada e nicotina numa mistura indigesta,
e o sol nascente me deixando mais letárgica, mais letárgica, mais...
Será que é possível estar mais bêbada? Pago pra ver.
E você acha graça, provavelmente pensando
“existe alguém no mundo mais junkie do que eu!!!...”
as putas e os travestis já se foram.
Mais um copo, mais um beijo,
sabor de cevada e nicotina numa mistura indigesta,
e o sol nascente me deixando mais letárgica, mais letárgica, mais...
Será que é possível estar mais bêbada? Pago pra ver.
E você acha graça, provavelmente pensando
“existe alguém no mundo mais junkie do que eu!!!...”
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
Música pro fim do carnaval
Mais um carnaval que termina...
Eu ainda carrego o estandarte com um coração vermelho pintado partido ao meio.
Sambei sobre cacos de vidro
só pra ver se a vida devolve tua imagem perdida na escola de samba.
Ah, se eu pudesse ser bamba
Ah, se eu pudesse ser tua
Ah, se eu pudesse ser todo o confete que desce no meio da rua...
Pra colar no teu corpo
Pra rolarmos no asfalto
pra cair lá do alto e forrar de poeiras de estrelas cadentes
onde você pisa.
meu coração ainda precisa
carnaval o ano inteiro
pra esquecer que no passado te ganhei e me perdi.
Meu coração tá cansado de sambar descompassado
no carnaval que termina te perdi.
Eu ainda carrego o estandarte com um coração vermelho pintado partido ao meio.
Sambei sobre cacos de vidro
só pra ver se a vida devolve tua imagem perdida na escola de samba.
Ah, se eu pudesse ser bamba
Ah, se eu pudesse ser tua
Ah, se eu pudesse ser todo o confete que desce no meio da rua...
Pra colar no teu corpo
Pra rolarmos no asfalto
pra cair lá do alto e forrar de poeiras de estrelas cadentes
onde você pisa.
meu coração ainda precisa
carnaval o ano inteiro
pra esquecer que no passado te ganhei e me perdi.
Meu coração tá cansado de sambar descompassado
no carnaval que termina te perdi.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
He's so vicious
Tenho um corte no canto do lábio inferior direito que dói quando ele me beija. Gosto dessa dor e quando o corte cicatriza eu mordo o canto do lábio até sangrar, pra doer de novo. Quando ele não está comigo passo a língua sobre o corte, devagar. É como se ele me beijasse. É um vício que não consigo largar. É um vício.
terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Manifesto do Amor Necessário
Não tenho mais vergonha de chorar em público. Nem de demonstrar o que eu sinto. Há tempos parei de me importar com as imposições imbecis do mundo em que vivemos, dos parâmetros desumanizantes da sociedade contemporânea que dizem que é melhor quem não se importa, que ser forte é não sentir, não se deixar abater pelas paixões e por todas as frustrações e sentimentos arrebatadores que elas podem gerar. Quero declarar agora, a plenos pulmões, aos quatro ventos, que sou um ser humano que vive sob a égide da ternura, apesar de todos os esforços deste mundo merda de me transformar em uma reles carapaça vazia de emoção, ou em alguém que reprime tanto aquilo que sente, buscando uma suposta superioridade, que acaba transmutando todo amor em amargura.
Amo sim, amo muito, porque tenho dentro de mim uma imensa capacidade de amar, condição sine qua non da minha existência. Tenho o direito, enquanto representante de uma conturbada espécie que caminha cega e descontroladamente em direção à auto-destruição, de amar irrestritamente, mesmo que para isso esteja exposta ao julgamento dos covardes, que não têm coragem de deixar-se arrebatar; dos que já perderam (ou nunca tiveram) ternura suficiente para viver a intensidade daquilo que sentem; ou dos que simplesmente compactuam com os parâmentros contemporâneos, reprimindo toda e qualquer sensação que possa abalar as estruturas da fortaleza que construíram em torno de si, para abrigarem-se de tudo aquilo que lhes ensinaram que deveriam temer.
Do julgamento vazio destes não tenho mais medo. Porque ainda acredito que tenha pares neste mundo – embora poucos. Alguns já os tenho próximos a mim, outros acredito existirem perdidos por aí, amando e sofrendo, chorando e se sensibilizando, sentindo e deixando aflorar os sentimentos até transbordarem, extravazando as barreiras da mediocridade alheia, interferindo no dia-a-dia mesquinho dos conformados, sendo a pedra no sapato dos que precisam a qualquer custo manter-se imunes às perturbações do sentir, julgando-se vitoriosos diante do que provavelmente consideram um tremendo incoveniente: amor.
O Jabor escreveu certa vez, numa série de crônicas maravilhosas onde ele expunha suas cáusticas e muito precisas constatações em relação ao que transformou-se o amor e as relações entre as pessoas no mundo contemporâneo, que o amor incomoda aos poderosos porque atrapalha a produção. O amor é contra-producente, pois para atender às demandas do todo poderoso mercado, o sujeito precisa ser frio, inescrupuloso e competitivo. E tudo isso bate de frente com o amor; amar ao próximo não condiz com o comportamento exigido pela sociedade nos dias de hoje. Porque o amor não é racional. Não é controlável, não é passível de análise dentro de padrões cartesianos. É um descontrole, uma manifestação inconsciente, uma patologia – ou seja, um incômodo. Deve, portanto, ser banido, ou pelo menos evitado como um mal desnecessário.
Amar intensamente, e expor desavergonhadamente ao mundo a intensidade de tudo o que sinto, é portanto não só uma necessidade intrínseca ao meu ser impregnado de ternura, mas também uma atitude de resistência ao processo de desumanização a que estamos submetidos o tempo todo, e uma forma de dizer ao mundo que não concordo e recuso-me a compactuar com toda a mesquinhez, covardia e sordidez que vão sendo implementadas e consolidadas ao longo deste processo.
Sem a pretensão de ser entendida. Ou amparada. Apenas amando, contra a corrente. Muito e sempre.
Amo sim, amo muito, porque tenho dentro de mim uma imensa capacidade de amar, condição sine qua non da minha existência. Tenho o direito, enquanto representante de uma conturbada espécie que caminha cega e descontroladamente em direção à auto-destruição, de amar irrestritamente, mesmo que para isso esteja exposta ao julgamento dos covardes, que não têm coragem de deixar-se arrebatar; dos que já perderam (ou nunca tiveram) ternura suficiente para viver a intensidade daquilo que sentem; ou dos que simplesmente compactuam com os parâmentros contemporâneos, reprimindo toda e qualquer sensação que possa abalar as estruturas da fortaleza que construíram em torno de si, para abrigarem-se de tudo aquilo que lhes ensinaram que deveriam temer.
Do julgamento vazio destes não tenho mais medo. Porque ainda acredito que tenha pares neste mundo – embora poucos. Alguns já os tenho próximos a mim, outros acredito existirem perdidos por aí, amando e sofrendo, chorando e se sensibilizando, sentindo e deixando aflorar os sentimentos até transbordarem, extravazando as barreiras da mediocridade alheia, interferindo no dia-a-dia mesquinho dos conformados, sendo a pedra no sapato dos que precisam a qualquer custo manter-se imunes às perturbações do sentir, julgando-se vitoriosos diante do que provavelmente consideram um tremendo incoveniente: amor.
O Jabor escreveu certa vez, numa série de crônicas maravilhosas onde ele expunha suas cáusticas e muito precisas constatações em relação ao que transformou-se o amor e as relações entre as pessoas no mundo contemporâneo, que o amor incomoda aos poderosos porque atrapalha a produção. O amor é contra-producente, pois para atender às demandas do todo poderoso mercado, o sujeito precisa ser frio, inescrupuloso e competitivo. E tudo isso bate de frente com o amor; amar ao próximo não condiz com o comportamento exigido pela sociedade nos dias de hoje. Porque o amor não é racional. Não é controlável, não é passível de análise dentro de padrões cartesianos. É um descontrole, uma manifestação inconsciente, uma patologia – ou seja, um incômodo. Deve, portanto, ser banido, ou pelo menos evitado como um mal desnecessário.
Amar intensamente, e expor desavergonhadamente ao mundo a intensidade de tudo o que sinto, é portanto não só uma necessidade intrínseca ao meu ser impregnado de ternura, mas também uma atitude de resistência ao processo de desumanização a que estamos submetidos o tempo todo, e uma forma de dizer ao mundo que não concordo e recuso-me a compactuar com toda a mesquinhez, covardia e sordidez que vão sendo implementadas e consolidadas ao longo deste processo.
Sem a pretensão de ser entendida. Ou amparada. Apenas amando, contra a corrente. Muito e sempre.
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
TPM
Não sei o que fazer com isso tudo que o corpo sente.
É realmente algo estranho e perigoso ser mulher.
(imagem por http://palomailustrada.blogspot.com.br/)
É realmente algo estranho e perigoso ser mulher.
(imagem por http://palomailustrada.blogspot.com.br/)
sábado, 24 de janeiro de 2009
A Esquizofrenia do Mundo
A esquizofrenia do mundo provoca revoadas de borboletas no meu estômago.
Enquanto caminho pelas mesmas ruas por onde caminhei toda a vida
penso no que aconteceria se pudesse andar de olhos e ouvidos fechados,
mas ainda assim andar, numa espécie de semi-autismo, ativo e voluntário.
(contraditório? absurdo?...)
Ah, mundo! Por que não me deixa em paz de uma vez?
Por que a humanidade não vai ver se eu estou na esquina?
Que os celulares derretam e os computadores explodam,
e os corretores da bolsa de valores
e os corretores de todos os seguros
e os malditos corretores de imóveis
e os corretores de alma, sangue e supostos sonhos
sejam todos jogados na rua de cueca samba-canção e narizes de palhaço
e que pelo amor de Deus, de Jah, de Buda, de Oxalá,
e de todos estes entes dos quais nunca mais quero ouvir falar,
não me dirijam mais a palavra.
Aos advogados, testemunhas de jeová, psicólogos, políticos e todos os demagogos,
aviso que não nasci.
Aos programadores, analistas de sistemas, cientistas e especialistas de todos os tipos,
aos filhos, discípulos e adoradores da técnica,
digo que sequer sei fazer fogo esfregando gravetos
e que ainda uso pedras lascadas para estripar animais mortos.
Parem de tentar me enfiar pela goela abaixo produtos de funcionalidade questionável e qualidade duvidosa.
Não tentem me vender nada. Não tentem me fidelizar.
Não tentem embotar o meu raciocínio com suas mensagens subliminares
e sua gestalt de merda. Sou cega. Sou surda.
Seu fetiche de pernas escancaradas não me seduz.
Ah, por favor, não falem comigo.
Eu mordo. Eu tenho pressa. Eu tenho raiva. Eu tenho fome.
Eu tenho um nó no peito e borboletas no estômago e olhos inchados de lágrimas.
Eu tenho uma bomba atômica e não tenho medo de usá-la.
Eu tenho acima de tudo a alma convulsiva de poesia em estado bruto.
Eu sofro.
E a única coisa que peço é pra ser deixada em paz.
Antes que o mundo me exploda
ou que eu exploda o mundo.
Antes que eu exploda.
Enquanto caminho pelas mesmas ruas por onde caminhei toda a vida
penso no que aconteceria se pudesse andar de olhos e ouvidos fechados,
mas ainda assim andar, numa espécie de semi-autismo, ativo e voluntário.
(contraditório? absurdo?...)
Ah, mundo! Por que não me deixa em paz de uma vez?
Por que a humanidade não vai ver se eu estou na esquina?
Que os celulares derretam e os computadores explodam,
e os corretores da bolsa de valores
e os corretores de todos os seguros
e os malditos corretores de imóveis
e os corretores de alma, sangue e supostos sonhos
sejam todos jogados na rua de cueca samba-canção e narizes de palhaço
e que pelo amor de Deus, de Jah, de Buda, de Oxalá,
e de todos estes entes dos quais nunca mais quero ouvir falar,
não me dirijam mais a palavra.
Aos advogados, testemunhas de jeová, psicólogos, políticos e todos os demagogos,
aviso que não nasci.
Aos programadores, analistas de sistemas, cientistas e especialistas de todos os tipos,
aos filhos, discípulos e adoradores da técnica,
digo que sequer sei fazer fogo esfregando gravetos
e que ainda uso pedras lascadas para estripar animais mortos.
Parem de tentar me enfiar pela goela abaixo produtos de funcionalidade questionável e qualidade duvidosa.
Não tentem me vender nada. Não tentem me fidelizar.
Não tentem embotar o meu raciocínio com suas mensagens subliminares
e sua gestalt de merda. Sou cega. Sou surda.
Seu fetiche de pernas escancaradas não me seduz.
Ah, por favor, não falem comigo.
Eu mordo. Eu tenho pressa. Eu tenho raiva. Eu tenho fome.
Eu tenho um nó no peito e borboletas no estômago e olhos inchados de lágrimas.
Eu tenho uma bomba atômica e não tenho medo de usá-la.
Eu tenho acima de tudo a alma convulsiva de poesia em estado bruto.
Eu sofro.
E a única coisa que peço é pra ser deixada em paz.
Antes que o mundo me exploda
ou que eu exploda o mundo.
Antes que eu exploda.
sábado, 3 de janeiro de 2009
01/01
Ela vê os fogos e não entende. Não entende o porque de sentir-se tão vazia de qualquer emoção, totalmente alheia à comoção geral à sua volta, à profusão de beijos, abraços, cascatas de espumante, desejos de renovação. Não pode evitar a lembrança dos reveillons da infância, quando os fogos estouravam bem próximo às pessoas na faixa de areia, galáxias inteiras vindo em sua direção como se fossem tragá-la, provocando as mais vertiginosas sensações, euforia e um friozinho na barriga - ok, de vez em quando alguém se queimava... mas era tão, tão bonito...
Nesta noite os fogos estão distantes, assim como está cada vez mais distante a menina de tranças e olhar embasbacado voltado pro céu onde explodiam supernovas. A menina de então sentia o corpo inteiro inundar-se de emoções, a cabeça de sonhos, o peito de ternura, os olhos de expectativa, os ouvidos da música que trazia a promessa de infinitas possibilidades abrindo-se à sua frente em mais um ano de sua vida que brotava e crescia inebriada de desejos.
A mulher deste primeiro de janeiro de mais um ano do terceiro milênio sente-se estranhamente triste e não sabe muito bem porquê. Seu corpo parece uma casca, um invólucro vazio de conteúdo, jogado de lá pra cá ao sabor dos empurrões dos milhões de espectadores da queima de fogos. Na cabeça as lembranças sobrepõem-se aos sonhos, tornando-a melancólica. No peito um aperto, a ternura quase totalmente sufocada pelas costantes restrições impostas pela vida. Os fogos agora parecem apenas a reprise de um filme antigo e sem graça e os goles de espumante gelado dão algum alento à garganta ressecada que engoliu em seco ao pensar nisso tudo. E embora abrace os amigos e repita pra cada um deles os votos - sinceros – de um feliz ano novo, sente-se irremediavelmente só em meio à multidão que comemora em uníssono.
Ela pensa em vida e em morte. Pensa em sua mãe e em seu filho. E pensa em si mesma como mais um elo neste estranho encadeamento de acontecimentos que se estende pra trás e pra diante com a mesma inconstante imprevisibilidade. Ela pensa em como seria bom se os desejos de renovação de tanta gente tivessem mesmo o mágico poder de alterar para sempre não só o seu estado de espírito, mas também o estado das coisas em geral, as próprias condições em que se encontram os milhares de seres humanos que perambulam a esmo sobre a face do planeta combalido terra. Ela fecha os olhos e tenta com toda a vontade de que é capaz concentar o pensamento em alguma coisa verdadeiramente boa e bela - Saramago e Fernando Pessoa, Florbela e Clarice, Beethoven e Vinícius, Mayakovski e Mallarmé, Neruda e Chico Science, Picasso e Frida Kahlo, Pasolini e Manoel de Oliveira, Almodóvar e Pina Bausch... – e resolve parar por aí porque há tanta beleza no mundo que chega a ser apavorante viver, e a beleza profunda nos dá a dimensão da própria existência, experimentar a beleza nos aproxima vertiginosamente da morte. Ela sente o nó do peito sufocado apertar-se ainda um pouco mais, e é impossível conter as lágrimas que já há algum tempo queimavam no canto dos olhos.
Mas todo esse pensamento junto não dura mais que fração de segundo. Ela também quer comemorar. Ela quer deixar-se levar pelo apelo quase irrestível do êxtase generalizado, exclamar embevecida a cada nova explosão a colorir o céu de Copa. Ela quer e precisa disso, ela precisa esquecer, esquecer-se, ser esquecida, ela precisa mergulhar no gozo anõnimo das multidões embriagadas, embriagando-se ela mesma da loucura e dos sonhos alheios. Ela esvazia a mente e deixa que o espetáculo de luzes tome conta dos olhos e a confusão de sons misturados saídos de milhões de bocas entreabertas transforme-se em música a encher os ouvidos, e todo aquele momento impreguina-se de imanência mundana tornando-se um amontoado de sensações simplesmente prazerosas.
Ela chora mas não há mais agonia. A tristeza subsiste e continua a incomodar, mas ela balança a cabeça expulsando momentaneamente os pensamentos sombrios. E sorri desejando profundamente que ainda haja uma boa reserva de momentos felizes para ela e para todos aqueles a quem ama, todos os seres que respiram com ela esse ar já não tão puro, mas ainda capaz de renovar esperanças.
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