quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Numa tarde de quarta...

Numa tarde de quarta-feira que deveria ser apenas mais uma como outra tarde de quarta-feira qualquer, ela se viu empreendendo uma profunda, dolorosa e ao mesmo tempo enternecida, jornada emocional. Por um motivo corriqueiro, ela teve que visitar o bairro onde nasceu, viveu sua infância, adolescência, cresceu. Depois desses anos intensos, ela saiu de lá, casou, descasou, rodou por aqui e ali, e acabou por achar outro bairro, outra gente, outro bar, outra praça pra chamar de seus. Tinha algo de urgente, em meio ao corre-corre diário, pra resolver ali. Era coisa, rápida, de bate-pronto, pá pum. Um ônibus, um metrô, uma rápida caminhada. Dava pra encaixar naquelas duas horinhas entre um compromisso e outro daquele dia cheio. O que ela não esperava é que o retorno àquela vizinhança, naquela tarde abafada e banal, fosse provocar em seu peito tamanha avalanche de sensações e lembranças. Avalanche que começou com uma leve pontada de saudade e reconhecimento quando ela emergiu da estação do metrô. A visão daquela praça, daquela rua repleta de flores, ladeada pelos antigos cinemas da infância, fez ela parar por um minuto e respirar mais fundo, tomar um pouco de fôlego pra continuar.Os cinemas, como tem sido o infeliz costume na cidade esvaziada de alma, deram lugar a uma igreja universal e a uma hiper-farmácia, mas a memória da fila virando o quarteirão em dia de estréia de filme encheram seu coração de cálida nostalgia. O assunto a ser resolvido era bem ali próximo, e depois do fôlego recuperado ela atravessou a rua florida e cumpriu rapidamente sua missão. Na volta, no entanto, ao invés de descer a escadaria do metrô, ela se sentiu irresistivelmente compelida a andar na direção contrária, rumo às galerias onde, por um outro motivo, ou por pura falta deles, ela havia muitas e muitas vezes circulado. Entrou por uma, tomada de lembranças, mas saiu logo pelo outro lado, porque a verdadeira emoção encontrava-se na próxima galeria adiante. Apesar de muita coisa haver mudado, ali ainda estavam, como que congelados no tempo, o antigo estúdio de tatuagens e as mesmas lojas de discos e camisetas. Ali, naquelas lojas, naquela galeria, reuniam-se os metaleiros, os punks, todos os fãs do bom e velho roquenrrol habitantes do bairro, e de outros cantos da cidade também. Ali as lembranças tornaram-se mais nítidas, mais vivas, desenrolando-se em sua memória com inesperada clareza e vigor. Mais uma pausa pra respirar fundo. Ela sentiu que queria caminhar. Para onde ela ainda não sabia, mas aquela de sensação de calorosa familiaridade com o espaço ao redor a deixou subitamente repleta de energia. Foi caminhando pela movimentada rua principal, lentamente, contrastando com as outras pessoas que perambulavam apressadas pra lá e pra cá, no frenesi urgente das duas e meia da tarde daquela quarta-feira. Ela olhava tudo e ia reparando no que mudou, no que permanece igual. Passou por mais um dos finados cinemas do bairro, transfigurado em gigantesca loja de departamentos. "Oh não, mais um, que pontada no coração". Cada metro de calçada transcorrido a levava a novas e vívidas lembranças, "fulano morava aqui, como me diverti nas matinês nesse clube, olha! aquela loja ainda existe no mesmo lugar!". Quase sem querer, quase sem notar, suas pernas a levavam mais e mais próxima do entorno onde ela morou. Uma lanchonete, uma igreja, um banco, mais uma galeria (como o bairro é cheio delas, solenes e imponentes!). Uma grande loja, um supermercado. Quando deu por si, ela já estava na esquina da outra praça. A outra praça. Que na verdade, pra ela, é A praça. Naquela grande, arborizada, bucólica praça e seu entorno, ela vivera muitas de suas melhores aventuras. Desde a infância brincando no playground de ferro e cavalgando os amados cavalinhos ou voltando pra casa de charrete, até a adolescência com suas emoções avassaladoras, seus dias calmos de conversas e paqueras intermináveis à sombra das árvores, na lanchonete, no gradil sobre o velho e fétido rio - já totalmente poluído àquela época. Ela respirou o ar da praça, neste ponto já tão emocionada que era como se um nó lhe apertasse com força a garganta. A praça estava ainda mais bonita do que ela se recordava, reformada, cheia de vida como sempre fôra, porém agora mais limpa e organizada, crianças brincando, idosos jogando cartas, gente correndo ao redor ou fazendo exercícios na nova academia ao ar-livre. A velha barraquinha de cachorro-quente dera lugar a sofisticado food truck, sinal dos tempos. Foi caminhar mais uma quadra pra notar que o boteco pé-sujo que ela frequentava, ponto de encontro dos amigos de outrora pra cerveja, vadiagem, conversa fora, se transformara em uma padaria "gurmetizada". Embora o ambiente fosse a antítese daquele que ela guardava na memória, não resistiu ao apelo de tomar uma cerveja gelada, brindando consigo mesma às boas memórias e à algumas talvez não tão boas assim, ponderando que todas fizeram parte, de uma forma ou de outra, do tão necessário aprendizado da vida. Ao lado do bar, há exatos 20 anos, morava o seu primeiro amor, sua primeira paixão avassaladora, naquele tempo de descobertas, de querer devorar o mundo todo ao mesmo tempo, de querer experimentar tudo que a vida tem pra oferecer de uma vez só, como se tudo fosse acabar amanhã. Tantas lembranças, boas e ruins, olhando praquele prédio, a portaria, o play. Desejou, mesmo sabendo impossível, voltar a ser aquela menina, mas com a sabedoria e experiência de agora. O nó se apertou. Mais alguns passos, e antes de entrar na ruazinha sem saída parou sob a sombra da marquise do prédio da esquina, como costumava fazer na época, e pôs-se a observar o ir e vir de quem passava, como fazia então, sozinha ou acompanhada. Ao percorrer a pequena e arborizada rua sem saída, surpreendeu-se com a descoberta de que agora ela dava na entrada dos fundos de um grande supermercado. "Ah, se essas árvores pudessem falar..." Atravessou o grande supermercado, dando mais uma vez na rua principal. Virou na próxima esquina, chegou na praça de novo, sentou ali num banco, de frente ao outro bar, com a cabeça e o peito atordoados de lembranças - uma mesa compartilhada com a amiga inseparável, camisetinha preta com logo da Harley-davidson, saia longa indiana, coturnos. Mate, bolinhos de bacalhau, risadas – muitas, muitas risadas! Começou a se sentir profundamente familiarizada com aquelas pessoas que passavam, que corriam, que passeavam com seus cães, que bebiam no bar à frente. Nessa hora o estômago roncou, e pra fechar essa tarde de intensa nostalgia com chave de ouro, não poderia haver melhor pedida do que a tradicional empada que, embora atualmente fosse facilmente encontrada nos quatro cantos da cidade, ainda podia ser saboreada ali, na mesma loja da rua principal do bairro onde ela nasceu. A empada continua tão boa quanto nos velhos tempos, em que o filho do dono trabalhava na loja e ela aproveitava a ocasião de comprar empadas pro lanche da família pra poder admirar timidamente aqueles belos cabelos longos... Fome saciada, coração acalentado, ela sentiu que era hora de voltar pra casa e pro aqui-e-agora. Avistou um ponto de ônibus e pra lá se dirigiu, cansada, confusa, nostálgica, sentindo-se um pouco tonta com a mistura inexplicável de excitação, exaustão e melancolia latejando dentro dela. Enquanto, sentada no ônibus a caminho do Centro, a mulher que ela é empreendia um lento e gradual retorno ao tempo atual em meio ao trânsito caótico da hora do rush , a menina que ela era naquele pretérito imperfeito, sorrindo em seu quarto no antigo apartamento, sonhava com o futuro emocionante que se estendia misterioso à sua frente. (imagem: Chiara Bautista, aka Milk)