sábado, 3 de janeiro de 2009

01/01



Ela vê os fogos e não entende. Não entende o porque de sentir-se tão vazia de qualquer emoção, totalmente alheia à comoção geral à sua volta, à profusão de beijos, abraços, cascatas de espumante, desejos de renovação. Não pode evitar a lembrança dos reveillons da infância, quando os fogos estouravam bem próximo às pessoas na faixa de areia, galáxias inteiras vindo em sua direção como se fossem tragá-la, provocando as mais vertiginosas sensações, euforia e um friozinho na barriga - ok, de vez em quando alguém se queimava... mas era tão, tão bonito...
Nesta noite os fogos estão distantes, assim como está cada vez mais distante a menina de tranças e olhar embasbacado voltado pro céu onde explodiam supernovas. A menina de então sentia o corpo inteiro inundar-se de emoções, a cabeça de sonhos, o peito de ternura, os olhos de expectativa, os ouvidos da música que trazia a promessa de infinitas possibilidades abrindo-se à sua frente em mais um ano de sua vida que brotava e crescia inebriada de desejos.
A mulher deste primeiro de janeiro de mais um ano do terceiro milênio sente-se estranhamente triste e não sabe muito bem porquê. Seu corpo parece uma casca, um invólucro vazio de conteúdo, jogado de lá pra cá ao sabor dos empurrões dos milhões de espectadores da queima de fogos. Na cabeça as lembranças sobrepõem-se aos sonhos, tornando-a melancólica. No peito um aperto, a ternura quase totalmente sufocada pelas costantes restrições impostas pela vida. Os fogos agora parecem apenas a reprise de um filme antigo e sem graça e os goles de espumante gelado dão algum alento à garganta ressecada que engoliu em seco ao pensar nisso tudo. E embora abrace os amigos e repita pra cada um deles os votos - sinceros – de um feliz ano novo, sente-se irremediavelmente só em meio à multidão que comemora em uníssono.
Ela pensa em vida e em morte. Pensa em sua mãe e em seu filho. E pensa em si mesma como mais um elo neste estranho encadeamento de acontecimentos que se estende pra trás e pra diante com a mesma inconstante imprevisibilidade. Ela pensa em como seria bom se os desejos de renovação de tanta gente tivessem mesmo o mágico poder de alterar para sempre não só o seu estado de espírito, mas também o estado das coisas em geral, as próprias condições em que se encontram os milhares de seres humanos que perambulam a esmo sobre a face do planeta combalido terra. Ela fecha os olhos e tenta com toda a vontade de que é capaz concentar o pensamento em alguma coisa verdadeiramente boa e bela - Saramago e Fernando Pessoa, Florbela e Clarice, Beethoven e Vinícius, Mayakovski e Mallarmé, Neruda e Chico Science, Picasso e Frida Kahlo, Pasolini e Manoel de Oliveira, Almodóvar e Pina Bausch... – e resolve parar por aí porque há tanta beleza no mundo que chega a ser apavorante viver, e a beleza profunda nos dá a dimensão da própria existência, experimentar a beleza nos aproxima vertiginosamente da morte. Ela sente o nó do peito sufocado apertar-se ainda um pouco mais, e é impossível conter as lágrimas que já há algum tempo queimavam no canto dos olhos.
Mas todo esse pensamento junto não dura mais que fração de segundo. Ela também quer comemorar. Ela quer deixar-se levar pelo apelo quase irrestível do êxtase generalizado, exclamar embevecida a cada nova explosão a colorir o céu de Copa. Ela quer e precisa disso, ela precisa esquecer, esquecer-se, ser esquecida, ela precisa mergulhar no gozo anõnimo das multidões embriagadas, embriagando-se ela mesma da loucura e dos sonhos alheios. Ela esvazia a mente e deixa que o espetáculo de luzes tome conta dos olhos e a confusão de sons misturados saídos de milhões de bocas entreabertas transforme-se em música a encher os ouvidos, e todo aquele momento impreguina-se de imanência mundana tornando-se um amontoado de sensações simplesmente prazerosas.
Ela chora mas não há mais agonia. A tristeza subsiste e continua a incomodar, mas ela balança a cabeça expulsando momentaneamente os pensamentos sombrios. E sorri desejando profundamente que ainda haja uma boa reserva de momentos felizes para ela e para todos aqueles a quem ama, todos os seres que respiram com ela esse ar já não tão puro, mas ainda capaz de renovar esperanças.

6 comentários:

Unknown disse...

Poesia em prosa contemporânea, onde se sobressai o cotidiano (e por isso a profundidade exasperada dos paradoxos); o banal, a rotina do calendário gregoriano, talvez até o kitch, q em fugazes e reluzentes momentos elevam a mísera condição recorrente de viver à categoria de um certo sublime flagrado.

Feliz cumple años. alex

Anônimo disse...

todo começo remete a um fim e vice e versa. lembro q na hora dos fogos na paulista, ao invés de logo abraçar os amigos presentes, eu paralisei, pensando justamente nas pessoas que Não estavam lá. mas só por um instante também. Adorável a forma como descreves e nos envolve nessa teia complexa de sentimentos e sensações e vida e morte. muito bonita a visão do elo, da mãe do filho, do que foi e do que virá...simplesmente belo.
bjs, marvin.

Anônimo disse...

Adorei seu comentário sobre a consulta ginecológica....é fato que não é mole encontrar médico com tanta empatia, mas tive essa sorte. Agora estou mudando de cidade, e iniciarei a peregrinação. Já te contarei.
Seu blog é ótimo!
bj

Anônimo disse...

As lágrimas da dor descem pelo rosto exatamente igual as da alegria. Seja lá qual delas for, exprimem vida, emoção é vida, memória é vida! Viver emoções é se entregar ao único compromisso da existência, viver a nossa própria vida! Viva, você está vivendo...
bjos
r;)

Anônimo disse...

Escreva mais, queremos lê-la!
bjs

Loryfairy disse...

Feliz ano novo super carnavalesco!!!