terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quatro bêbados

Somos quatro bêbados, eu, ela, ele, ela. A música da velha juke box soa onírica, talvez porque venha de um passado distante - custa-lhe atravessar a borda do tempo. Às vezes ponho moedas e desejo algo mais que a melodia suja arranhada no vinil da vitrola. Desejo um pedaço dele, ele um pedaço dela, ela um pedaço dele, ele um pedaço de mim. Nossa roda ciranda etílica quase sempre ensandesce e termina e começa e rodando a minha cabeça não consegue mais fixar os olhos dele e para nos dela e volta pros dele e acaba nos dela novamente... São castanho-claro-verde-embotados. São raros.
Ele acende um cigarro, traga, eu tomo um trago, ela bebe um copo, ele canta junto a melodia ancestral, eu também canto, eu sempre canto, todos cantamos quando estamos bêbados, todos cantamos agora.
Só quem escuta é Seu Osvaldo, que trouxe a juke box de um passado remoto e instalou aqui ao lado da cozinha, pra alegria dos bêbados, pra alegria das putas, pra alegria dos cães, pra nossa alegria, lentamente embalada ao som das notas espalhadas, esparramadas em nossos corpos que se esbarram e se tocam movidos unicamente pela certeza de estarem fadados ao máximo possível de união permitida aos seres de carne, sangue e sonhos quentes. Seu Osvaldo é testemunha ocular do momento exato em que somos arrebatados, confiamos nele. Somos foragidos do mundo-de-fora tentando esquivar-nos de fios débeis de sol que escorrem através das fendas miúdas da janela fechada. Somos quatro bêbados tentando ser um, tentando ser três, tentando ser dois, voltando a ser quatro... eu, ele, ela, ele, não necessariamente nessa ordem, nesse tempo, nesse espaço. Somos som, movimento, somos fúrias, tesão, somos o momento em que o objeto lançado ao alto pára suspenso por um fio invisível preso ao infinito, somos a soma de inúmeras frações de desejos varridos pra debaixo do tapete das almas ao longo dos séculos.
Somos tudo isso, ao mesmo tempo, agora, sempre. Fomos, somos e seremos a república etílica-onírica da juke box. Um não-lugar num tempo-espaço que existe apenas quando a música toca e nós a habitamos. Bebemos, cantamos e dançamos unidos pelos laços da sagrada bebedeira sacramentados por Seu Osvaldo, que abastece nossos sonhos com mais uma saideira, desejando espertamente que a fonte nunca seque. Mesmo que o sol já vá alto lá fora, quatro bêbados brindamos, eu, ele, ela, ele. Mais uma moeda, por favor, the show must go on.

2 comentários:

Tchello Melo disse...

Excelente, bem ilustrativo, Aurora escrevendo além da aurora!

The poetry must go on!

marcio leandro disse...

a dama e suas vagabundagens poéticas.
tá mais lírico, mais leve, mas também achei mais melancólico. já eu ando com uma preguiça danada de escrever.
beijocas.