domingo, 19 de maio de 2019
Sonho IV
Sigo por uma estrada ladeada por florestas.
Sinto que flutuo.
Na minha frente correm dois coelhos, talvez sejam lebres. Seu pelo é marrom.
Numa dança espiral, os coelebres se transfomam em majestosos potrinhos negros, de crinas ondulantes.
Na corrida-dança-espiral eles se entrelaçam, se afastam, se reúnem e se atravessam, como se desprovidos de substância córporea.
Eles se desvanescem em uma nuvem de poeira e folhas secas.
À minha frente, surge a figura imponente de Baphomet.
Ela/ele me encara com olhos caprinos.
Esse olhar atravessa-me a alma de ponta a ponta.
(imagem: Baphomet)
terça-feira, 7 de maio de 2019
O Amigo Morto do Facebook
Uma coisa que frequentemente me incomoda e intriga é quando um amigo morre e o perfil dele nas redes sociais continua lá, cheio de fotos sorridentes, posts espirituosos, declarações de amor à cara-metade. Murais e timelines acabam se transformando em verdadeiros epitáfios, onde parentes, amigos (e eventualmente inimigos) correm em romaria a deixar mensagens de despedida ou textos de exaltação ao morto. É lógico que as redes sociais não possuem um mecanismo capaz de detectar que determinado usuário bateu as botas, e em todas elas é o próprio que tem que cancelar sua conta – e na esmagadora maioria dos casos, nenhum de nós consegue prever a própria morte. Mesmo que alguns conseguissem, talvez não o fizessem por gostar da idéia de permanecer ali, virtualmente eternizados. Será que tem internet banda larga do outro lado?
Pois bem. Eis que ontem, sem mais nem menos, recebi uma mensagem no facebook. Imagino minha expressão ali parado, com os olhos arregalados e a boca aberta, ao ver o nome que piscava em azul na minha tela: Fábio M. Garcia. Justamente um amigo de infância, falecido há quase um ano, com o qual eu não estabelecera muito contato nos últimos dez anos de sua vida. Minha primeira, espontânea e irracional reação foi de horror, hesitei em clicar ali. Mas num segundo momento retornei à razão, imaginando que algum amigo ou parente que soubesse a senha do falecido estava a fim de fazer uma brincadeirinha boba.
“Fala, cara! Quanto tempo, hein? ;)”
Fiquei ali com cara de bobo, pensando se dava uma resposta malcriada ou simplesmente ignorava. Afinal, tratava-se de uma brincadeira bastante sem-graça, de mau gosto até. Não sou religioso, nem supersticioso, muito menos mal humorado, mas sei lá... tem coisa na vida que a gente tem que respeitar né, existem limites - e não acho de bom tom mexer com gente morta não. Resolvi pagar pra ver até onde o “troll” era capaz de chegar.
“Pois é... você sumiu...”
“Bom, se você gosta de chamar isso de ‘sumir’ ... ou não me diga que você não ficou sabendo que eu abotoei o paletó, estiquei as canelas, comi capim pela raiz, etc? Hahaha :P”
OK, aquilo estava começando a ir longe demais pra mim. Chega de piada com o finado, vou acabar com isso agora!
“Olha aqui, companheiro, você não tem respeito com aqueles que já passaram desta pra melhor não? Essa sua brincadeira é de um tremendo mau-gosto! Se a intenção foi me assustar, sinto muito, mas não acredito em fantasmas. Se foi apenas rir às custas de alguém que não está mais aqui pra se defender, só posso dizer que sinto desprezo por você.”
“Que é isso, rapaz! Sou eu, o Fábio! Pelamordedeus, pára com isso e me ouve... você não sabe o que eu tive que passar, quantas regras tive que infringir, quantas mãos tive que molhar, pra chegar até o ponto de conseguir permissão pra estar aqui e agora, chateando contigo! Vou te contar, isso aqui é muito parecido com um colégio interno... mas calma aí, que já tô falando demais e saindo do foco, me desviando do motivo que me levou a tomar essa atitude extremamente drástica pros padrões daqui...”
“Chega!!! Vou te excluir! Você morreu, quer dizer, o Fábio morreu, tá morto e enterrado, já virou comida de vermes – vermes como você que são capazes de uma atitude bizarra dessas!”
“PERAÍÍÍÍ, CARAAAA!!! Não me exclui ainda, calma, me ouve, ou seria melhor dizer ‘me lê’, hehehe :P... Vou provar que sou eu: lembra daquela noite em que...”
Daí algo inesperado, absurdo e surpreendente aconteceu: ele citou uma estória acontecida há treze anos atrás, um caso envolvendo sexo, violência gratuita e coca-cola com menthos, uma daquelas noites que você empurra pra debaixo do tapete da memória porque envolve uma série de contratempos verdadeiramente constrangedores e brutais, os quais você faz questão absoluta não só de não lembrar, como também de fazer um pacto de silêncio eterno com todas as partes envolvidas. E, no caso, a terceira parte envolvida – uma antiga colega do ginásio - também estava morta. Senti os pêlos da minha nuca se arrepiando devagar. Como alguém poderia saber daquela estória??? Calma, calma. Respira. Obviamente o Fábio, aquele filhadaputa mentiroso, havia quebrado o pacto de silêncio e contado a alguém os embaraçosos/comprometedores acontecimentos de treze anos atrás. E agora esta pessoa estava aproveitando não só pra tirar uma com a minha cara, mas talvez até pra, quem sabe, me chantagear? Comecei a suar frio. Resolvi ir direto ao ponto.
“Olha aqui, se a sua intenção é me chantagear, vamos logo com isso. Quais são seus termos, porra???”
“Caniço, Caniço, por tudo o que é mais sagrado, pela alma da sua vovozinha Genoveva, acredita em mim, cara!”
... Ó meu deus! Ele estava usando o mesmo apelido que usava pra me chamar quando éramos uma dupla inseparável na infância. E meu pavor só fez aumentar quando ele começou a escrever em código, um código que nós dois inventamos quando crianças pra trocar cartas e planos de dominação do mundo que só nós entenderíamos! Não havia motivo algum pra que ele tivesse revelado esse código pra alguém... Mas, mas... Será... Meu deus, será possível que?... Será possível???
“Olha aqui Caniço, eu não vou poder demorar muito mais tempo aqui. Mas preciso te avisar uma coisa”
“O quê... o que é?” Eu já não sabia mais em que acreditar, a garganta seca e o coração na boca.
“Você vai morrer. Esta noite.”
“O quê???.... Não... não pode ser... eu estou saudável...”
“Pode ter certeza. Desta noite você não passa. Infarto fulminante.”
Fiquei completamente imóvel, os olhos pregados na tela, a cabeça a mil, aquilo era possível? Minha mente finalmente sucumbiu ao terror: “Meu deus... não sei o que fazer, Fábio, por favor me ajude!”
“Foi concedido a você o direito de me fazer uma pergunta. Só uma. Talvez tirar alguma dúvida a respeito da passagem ou da vida após a morte possa, de alguma forma, aliviar seu medo e sofrimento, camarada.” Minha cabeça girava e as pernas tremiam. Minha mente se debatia entre o pavor insano e irracional, a negação, o desespero, que já haviam suprimido qualquer resquício de razão.
“Vai logo, cara, faz a pergunta, não temos muito tempo”
Consegui controlar por segundos meus espasmos de medo.
“A internet, aí do outro lado... é banda larga?”
Nenhuma resposta. Nem uma palavra apareceu na tela. Alguns segundos se passaram até que eu percebesse que a minha própria internet banda larga me deixara na mão naquele exato instante!
Pelo sim, pelo não, deletei meu perfil do facebook.
Pois bem. Eis que ontem, sem mais nem menos, recebi uma mensagem no facebook. Imagino minha expressão ali parado, com os olhos arregalados e a boca aberta, ao ver o nome que piscava em azul na minha tela: Fábio M. Garcia. Justamente um amigo de infância, falecido há quase um ano, com o qual eu não estabelecera muito contato nos últimos dez anos de sua vida. Minha primeira, espontânea e irracional reação foi de horror, hesitei em clicar ali. Mas num segundo momento retornei à razão, imaginando que algum amigo ou parente que soubesse a senha do falecido estava a fim de fazer uma brincadeirinha boba.
“Fala, cara! Quanto tempo, hein? ;)”
Fiquei ali com cara de bobo, pensando se dava uma resposta malcriada ou simplesmente ignorava. Afinal, tratava-se de uma brincadeira bastante sem-graça, de mau gosto até. Não sou religioso, nem supersticioso, muito menos mal humorado, mas sei lá... tem coisa na vida que a gente tem que respeitar né, existem limites - e não acho de bom tom mexer com gente morta não. Resolvi pagar pra ver até onde o “troll” era capaz de chegar.
“Pois é... você sumiu...”
“Bom, se você gosta de chamar isso de ‘sumir’ ... ou não me diga que você não ficou sabendo que eu abotoei o paletó, estiquei as canelas, comi capim pela raiz, etc? Hahaha :P”
OK, aquilo estava começando a ir longe demais pra mim. Chega de piada com o finado, vou acabar com isso agora!
“Olha aqui, companheiro, você não tem respeito com aqueles que já passaram desta pra melhor não? Essa sua brincadeira é de um tremendo mau-gosto! Se a intenção foi me assustar, sinto muito, mas não acredito em fantasmas. Se foi apenas rir às custas de alguém que não está mais aqui pra se defender, só posso dizer que sinto desprezo por você.”
“Que é isso, rapaz! Sou eu, o Fábio! Pelamordedeus, pára com isso e me ouve... você não sabe o que eu tive que passar, quantas regras tive que infringir, quantas mãos tive que molhar, pra chegar até o ponto de conseguir permissão pra estar aqui e agora, chateando contigo! Vou te contar, isso aqui é muito parecido com um colégio interno... mas calma aí, que já tô falando demais e saindo do foco, me desviando do motivo que me levou a tomar essa atitude extremamente drástica pros padrões daqui...”
“Chega!!! Vou te excluir! Você morreu, quer dizer, o Fábio morreu, tá morto e enterrado, já virou comida de vermes – vermes como você que são capazes de uma atitude bizarra dessas!”
“PERAÍÍÍÍ, CARAAAA!!! Não me exclui ainda, calma, me ouve, ou seria melhor dizer ‘me lê’, hehehe :P... Vou provar que sou eu: lembra daquela noite em que...”
Daí algo inesperado, absurdo e surpreendente aconteceu: ele citou uma estória acontecida há treze anos atrás, um caso envolvendo sexo, violência gratuita e coca-cola com menthos, uma daquelas noites que você empurra pra debaixo do tapete da memória porque envolve uma série de contratempos verdadeiramente constrangedores e brutais, os quais você faz questão absoluta não só de não lembrar, como também de fazer um pacto de silêncio eterno com todas as partes envolvidas. E, no caso, a terceira parte envolvida – uma antiga colega do ginásio - também estava morta. Senti os pêlos da minha nuca se arrepiando devagar. Como alguém poderia saber daquela estória??? Calma, calma. Respira. Obviamente o Fábio, aquele filhadaputa mentiroso, havia quebrado o pacto de silêncio e contado a alguém os embaraçosos/comprometedores acontecimentos de treze anos atrás. E agora esta pessoa estava aproveitando não só pra tirar uma com a minha cara, mas talvez até pra, quem sabe, me chantagear? Comecei a suar frio. Resolvi ir direto ao ponto.
“Olha aqui, se a sua intenção é me chantagear, vamos logo com isso. Quais são seus termos, porra???”
“Caniço, Caniço, por tudo o que é mais sagrado, pela alma da sua vovozinha Genoveva, acredita em mim, cara!”
... Ó meu deus! Ele estava usando o mesmo apelido que usava pra me chamar quando éramos uma dupla inseparável na infância. E meu pavor só fez aumentar quando ele começou a escrever em código, um código que nós dois inventamos quando crianças pra trocar cartas e planos de dominação do mundo que só nós entenderíamos! Não havia motivo algum pra que ele tivesse revelado esse código pra alguém... Mas, mas... Será... Meu deus, será possível que?... Será possível???
“Olha aqui Caniço, eu não vou poder demorar muito mais tempo aqui. Mas preciso te avisar uma coisa”
“O quê... o que é?” Eu já não sabia mais em que acreditar, a garganta seca e o coração na boca.
“Você vai morrer. Esta noite.”
“O quê???.... Não... não pode ser... eu estou saudável...”
“Pode ter certeza. Desta noite você não passa. Infarto fulminante.”
Fiquei completamente imóvel, os olhos pregados na tela, a cabeça a mil, aquilo era possível? Minha mente finalmente sucumbiu ao terror: “Meu deus... não sei o que fazer, Fábio, por favor me ajude!”
“Foi concedido a você o direito de me fazer uma pergunta. Só uma. Talvez tirar alguma dúvida a respeito da passagem ou da vida após a morte possa, de alguma forma, aliviar seu medo e sofrimento, camarada.” Minha cabeça girava e as pernas tremiam. Minha mente se debatia entre o pavor insano e irracional, a negação, o desespero, que já haviam suprimido qualquer resquício de razão.
“Vai logo, cara, faz a pergunta, não temos muito tempo”
Consegui controlar por segundos meus espasmos de medo.
“A internet, aí do outro lado... é banda larga?”
Nenhuma resposta. Nem uma palavra apareceu na tela. Alguns segundos se passaram até que eu percebesse que a minha própria internet banda larga me deixara na mão naquele exato instante!
Pelo sim, pelo não, deletei meu perfil do facebook.
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