sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Penso, logo me irrito


Ontem à noite abracei e beijei um livro. Foi um gesto espontâneo, de pura gratidão por ele ter me proporcionado duas horas de leitura frenética e pleno deleite. E olha que eu não tô falando do Kama Sutra, nem do Delta de Vênus ou algo que o valha. Este prazer de tamanha intensidade muito poucas coisas, pessoas ou situações têm conseguido me proporcionar nos últimos tempos. E isto, infelizmente, inclui sexo.
Tenho bebido mais ultimamente. Porque quando fico bêbada não me importo mais com pequenos detalhes. Pequenas chateações. A bebida embota a visão e o pensamento, e os detalhes se diluem num todo caótico, se confundem com a paisagem do olhar míope da embriaguez. E todas aquelas pequenas gotas de irritação, frsutração, desgosto, com a existência, com a humanidade em geral – e alguns espécimes em particular, evaporam e liquefazem-se em litros e mais litros de cerveja que descem goela abaixo me fazendo por vezes até acreditar, em lindos e loucos instantes, que a vida é de fato algo simples, bom e belo.
Tenho me esforçado pra vencer a amargura e não me deixar arrebatar por raivas, tristezas, frustrações, etc, principalmente aquelas provocadas pelas situações do cotidiano e sua odiosa e tacanha irmã siamesa, a rotina. Eles são como pequenos demônios, daqueles que atuam nos mais baixos escalões do inferno, e vêm ao mundo apemas para chutar bengalas de velhinhos e roubar pirulitos de crianças. São medíocres, porém capazes de te tirar do sério como uma unha encravada ou a dorzinha de cabeça chata de uma ressaca.
Porém, o simples fato de ter que me esforçar pra “fugir” dos estresses me parece muito estranho, artificial. Intuitivamente acho que talvez fosse uma questão, quem sabe, de saber canalizar esses sentimentos, mas para que, para onde, como?... Me ponho a elucubrar.
Também, me incomoda um pouco o fato de estarmos vivendo uma certa ditadura do bem-estar. É imperioso que as pessoas estejam se sentindo bem O TEMPO INTEIRO, o tempo inteiro felizes, o tempo inteiro com um maldito sorriso no rosto, como cavalos nos quais avalia-se a saúde pelos dentes. As pessoas perseguem incessantemente essa meta, a busca da felicidade perene, alguns (muitos) cultuam loucamente o físico, outras acreditam no caminho espiritual, alguns (bem) poucos querem aliar as duas coisas. Tudo utopia. É uma profunda contradição a crença de que há possibilidade de se viver em estado semi-constante de alegria e bem-estar, quando todo um mundo conspira contra isso há seculos.
E como toda ditadura, inevitavelmente, se mantem na base da repressão e das patrulhas, na Ditadura do Bem-estar há as patrulhas, da alegria, do bom-humor, etc, cujos discursos vão desde o simples e apaziguador “Calma, tudo vai dar certo”, até a crença no poder do “pensamento positivo”. E ai de quem manifesar publicamente raiva, insatisfação, tristeza, mau-humor etc. De todos os lados vem um batalhão de patrulheiros, alguns condenando, outros desprezando, mais alguns te olhando com olhar de quem olha um louco, outros oferecendo palavras supostamente edificantes, o viciado em endorfina recomendando uma academia, o zen sugerindo a ioga, o simplório citando frases de auto-ajuda, o crente oferecendo a “palavra de deus”, o intelectual passando o telefone de seu terapeuta, o que não consegue se resolver nem com terapia oferecendo umas pílulas de Rivotril, e por aí vai... Sensações que são absolutamente inerentes à condição humana (um tanto o quanto miserável em grande parte) são vistas como condenáveis e inoportunas. “Sua revolta só faz mal a você mesmo” e clichês do gênero apenas simplificam a questão. Porque tudo tem dois lados (no mínimo), e se não houvesse sensação de mau-humor, trsiteza ou raiva, como poderia haver a constatação da alegria quando ela verdadeiramente se manifesta? Ou como sentir a profunda leveza daqueles momentos em que uma pequena, porém genuína satisfação parece fazer o complexo da vida parecer mais simples? Não se trata aqui, portanto, de fazer apologia do sofrimento ou da raiva ou da revolta, mas sim do direito a eles, a vivê-los como tem e como devem ser vividos, sentidos.
Este suposto estado de satisfação plena não existe, nem ao menos para os monges do Tibet, quanto mais para nós reféns de uma sociedade toda errada. O descontentamento momentãneo move muito mais coisas que o contentamento perene, estagnado. A insatisfação é necessária e necessariamente acaba por produzir mudanças (embora estejamos deixando cada vez mais escorrer por entre os dedos nosso poder de promover mudanças, num processo infelizmente irreversível). Quem (ainda) tem senso crítico, sente. E a raiva, tão mau-vista, nada mais é do que a consequência natural das constantes, incessantes sacanagens de todos os gêneros e graus a que somos subetidos no dia-a-dia. Quem (ainda) tem sensibilidade, sente.
Como disse antes, ultimamente tenho encontrado meu falso bem-estar no álcool, e um bem-estar genuíno, embora bem mais escasso, na leitura, na música, nos filmes. Mas a arte está em outro patamar, através dela ultrapasso os limites do simples “bem-estar” para atingir o sublime, que é a verdadeira experiência sensorial da beleza. Mas ela anda tão banalizada. E há muito menos arte e muito mais enfado, mesmice e mediocridade no reino mesquinho do cotidiano e da rotina.
(imagem: Milk http://www.myspace.com/logyu)