Mais um dia cinza, desses de céu cor-de-chumbo que quer desabar todo sobre a minha cabeça. Reina a melancolia. Deitada na minha cama posso ver da janela um pedacinho do céu que ameaça em surdina. Mas ele é pequeno e débil visto daqui, como um quadro na moldura da janela. Um céu bebê de chumbo, controlado e contido, adormecido num leito de esquadrias de alumínio, nana-nenê. Me deito na cama porque nela mandei instalar um dossel, que era algo que eu sempre quis ter numa cama: um dossel. Assim refugiada numa espécie de tenda que remete às lendas das mil e uma noites e às princesas encantadas dos contos da minha infância, um enorme conforto me transporta pra dentro do sonho sem estar propriamente adormecida. Minha cama é como um sólido recorte no mundo real, repleto de espaço etéreo preenchido apenas pela fantasia. Um lugar onírico onde reina o meu desejo, esse desejo louco e latente e embriagado e imensurável, esse desejo ao mesmo tempo de vida, de sonhos, de delírio, de loucura. Esse desejo que pulsa e grita e que frequentemente transborda e se espalha em todas as direções numa explosão impossível de ser controlada.
Ao mesmo tempo o dossel, que contêm este espaço, o delimita geograficamente, e dentro dele me sinto segura como em nenhum outro espaço físico do planeta. Ali dentro meu desejo pode explodir como bomba H, como tsunami, ou como colisão de gigantescos conglomerados de estrelas, sem varrer do mapa japões, indonésias ou galáxias inteiras. Sem causar maiores transtornos ao resto da humanidade, que afinal de contas ninguém tem culpa do fato de eu sentir demais. Nem eu mesma, aliás. Nem a culpa, aliás. (Nem mesmo a própria culpa, esta pobre serviçal da moral dos tempos, tem absolutamente nada a ver com o fato de fazer-se sentir em momentos completamente inadequados... é a consciência sempre vigilante que a intima a comparecer como o algoz dos sentimentos mais profundamente enterrados nos recônditos da alma humana).
Aqui me refugio e no refúgio meu desejo se espalha, e o dia cinzento e o medonho céu de chumbo são vagas lembranças do mundo distante. Meu quarto e meu corpo são feitos da mesma matéria, e ela pulsa. Eu fujo pro sonho porque é nele que sempre me busco, e quando quase me encontro mais fundo me escondo, porque esse sempre foi meu passatempo favorito, e parar de me esconder seria me entregar definitivamente ao caminho sem volta que nos leva à vida totalmente adulta. E eu definitivamente não quero abandonar a criança que foge pra debaixo da cama de dossel, pois sinto que ela precisa de mim tanto quanto eu preciso dela, não há possibilidade de uma sem a outra. Mesmo que todos discordem e o mundo me diga o tempo todo “cresça!”, eu sigo sendo a menina de tranças, a menina de rosa, a menina de bandeide no joelho que ama uma boneca chamada... droga, não me lembro mais o nome dela..
Essa menina já tem em si todo o desejo do mundo, e apesar disso não tem o medo de deixá-lo transbordar. Essa menina não precisa do dossel na cama a não ser nas fantasias de princesa adormecida. Ela não precisa criar um espaço para a fantasia, porque vive inteira dentro de seu território. E o desejo da menina não vira tsunami ou bomba H, muito menos explosão de supernova, porque a menina o tem transbordando num fluxo contínuo por cada poro a todo o momento.
A menina sou eu e eu sou a menina. Tento apenas equilibrar o jogo, porque às vezes, muitas vezes, bem mais do que eu gostaria, eu preciso sair debaixo do dossel da cama pra encarar um céu cinzento disfarçando o medo que eu sinto, que não é bem-visto pelos olhos do mundo. E todo esse desejo que tenho, impertinente, que não cabe num templo ou numa caixa de sapatos, esse desejo que explode no universo infinito de uma cama de dossel, tenho que guardá-lo nos limites do palpável, que assim fica mais fácil de mantê-lo adormecido.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
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